A artista paulistana Ana Sario realizou a mostra individual Incriado na Galeria Virgilio.
Gesto e movimento natural
O plano cartesiano foi uma invenção da filosofia do século XVII que, além de permitir que o homem localize pontos no espaço plano com maior precisão, foi fundamental para a formação do pensamento moderno. As coordenadas X (horizontal) e Y (vertical), a abscissa e a ordenada, respectivamente, também são importantes para a compreensão da cartografia, da geografia física, assim como para o domínio do espaço terrestre ou marítimo. A pintura de Ana Sario tem como ponto de partida as coordenadas horizontal e vertical, mas sem qualquer rigidez cartesiana. A estrutura visual reduzida por Mondrian ao essencial, as diretrizes básicas de orientação no espaço, permanece nos movimentos das pinceladas da artista, mas a geometria é rompida por um gesto lento e singular. Cada um dos fios do pincel fica aparente numa fatura espessa que tende ao relevo. É como se o ritmo da pintura fosse análogo às pequenas ondas do mar, num fluxo contínuo de ida e volta. A racionalidade e a precisão são quebradas por um movimento irregular e natural.
Toda a mostra acaba tratando das mudanças na paisagem a partir de deslocamentos horizontais e verticais, o que possui relação direta com as marés altas e baixas. A relação com o movimento do mar é inclusive elaborada numa espécie de pintura/representação gráfica que pode ser situada entre a figuração e a abstração. A interferência gravitacional da lua e do sol produz forças de atração que interferem diretamente na visão que temos da terra. Uma das maiores pinturas da mostra, um tríptico de uma vasta extensão de território marítimo, revela que os movimentos do mar se confundem com os gestos da artista. Mas em vez do caos, como nas pinturas de Turner, aqui há calmaria. Como não existe linha do horizonte o espaço parece imensurável, os limites entre céu e mar, assim como a noção de escala, se dissolvem. Na era da fotografia digital, é relevante que imagens produzidas por máquinas fotográficas analógicas sejam não apenas referência para muitas das pinturas, mas que seus vestígios, margens, bordas e sobreposições tenham presença marcante. Há aqui uma tentativa de suspender o imediatismo, o tempo acelerado da foto digital que poucas vezes consegue sair da tela do computador. Uma temporalidade interna, própria do processo de uma pintura artesanal feita em camadas, é revisitada nesses trabalhos.
Na produção de Ana Sario não há tampouco uma supervalorização da imagem ou de uma pintura fotográfica. A fotografia é um instrumento como outro qualquer. E mesmo quando o tema parece ser o próprio dispositivo fotográfico, como nas pequenas pinturas de ampliações de Polaroid, trata-se apenas de uma alusão à técnica. Tanto é assim que nelas não há figuras pintadas no local correspondente ao da imagem, mas apenas um formato que nos remete à fotografia. Os movimentos verticais e horizontais que compõem a tela parecem mais fundamentais do que tudo. E por isso eles formam e ao mesmo tempo apagam o campo que seria o da representação, o lugar do retrato.
As flutuações e as oscilações de níveis do mar, e com isso os movimentos para baixo e para cima provocados pela maré vazante e pela cheia, são levados ao espaço tridimensional numa instalação com um barco real. Nela impera o silêncio, o vazio e uma espécie de adiamento das horas. Devido a um mecanismo eletrônico bastante sofisticado que contém motor, cabos e roldanas, a pequena embarcação é içada e arriada num ritmo quase imperceptível, obedecendo rigorosamente a altura correspondente ao da previsão das marés no porto de São Sebastião. A referência é a tábua de marés divulgada pela marinha, a previsão sobre o movimento periódico que eleva e abaixa as águas do mar, duas vezes por dia, em relação a um ponto fixo. Como se sabe, essa variação se deve às fases da lua, ao movimento da terra em relação ao sol, ao horário e às coordenadas de localização no espaço.
Apesar do maquinário necessário para o funcionamento da peça, não se trata aqui de um tempo mecanizado e puramente quantitativo. Ao contrário, a questão central é a recuperação de seu fluxo natural e de sua qualidade cíclica. Nesse trabalho e em toda a mostra, Ana Sario produz um efeito avesso ao automatismo. Para quem está acostumado com o ritmo mecanizado da cidade, é como se o tempo não transcorresse, como se estivesse alargado no limite do possível. Aqui tudo se passa como se vivêssemos numa espécie de eternidade provisória.
por Cauê Alves
Serviço
Incriado | mostra individual de Ana Sario
Abertura 10 de outubro, quarta-feira, a partir das 20 horas
Período expositivo de 11 de outubro a 8 de novembro de 2012
Local Galeria Virgilio
Endereço: Rua Virgílio de Carvalho Pinto, 426
CEP 05415-020, Pinheiros, São Paulo – SP
Telefone: (55 11) 2373 2999
Horários: de segunda a sexta, das 10 às 19h; e sábados, das 10 às 17h
Entrada franca e livre