Juliana Gomes nasceu em São Paulo e fez Filosofia na PUC. Há três anos dedica-se integralmente à escrita literária e de roteiro audiovisual. Entre suas buscas, já realizou diversas vezes a Oficina de Criação Literária com o poeta pernambucano Marcelino Freire.
Seguindo as postagens da sessão Feito no b_arco, trazemos abaixo algumas palavras de Juliana sobre o espaço:
“b_arco é túnel perfumando por tapioca, templo do Marcelino Freire: Amém, Jesus! b_arco é sala de parto e cemitério, fórceps com doula bem treinada. b_arco é onde nasço e morro, é onde morro pra chegar à outra margem. b_arco era perto de casa, agora é longe do que nunca foi casa. b_arco é onde quero estar, nem margem, nem destino, nem ponto de partida. b_arco promete, quebra, traça e cumpre o caminho. Obrigada!”
Leia abaixo um dos textos de Juliana realizado durante o a Oficina:
Mariposa
“O parto
§1. Sempre gostei de focar num ponto e prestar atenção até transformar-se em algo com sentido.
§2. As veias da madeira, da porta do banheiro, da casa da minha mãe, formavam fadas quando eu era pequena, depois envelheceram, tornaram-se bruxas, mais tarde, monstros, evitava olhar, tive prisão de ventre nessa época. Agora olho para a quina do guarda-roupas, aqui do meu quarto, daqui de onde estou deitada, daqui de onde tento parir você, não sei e nem quero saber quem é, daqui de onde consigo abrir as pernas um pouco mais do que me foi pedido, daqui de onde o suor não encontra fosso e escorre para a minha camisa encharcada, e parece, a tinta que descascou revela outra tinta, de uma cor amena, ela cresce até que não possa identificá-la, queria poder levantar só um pouquinho, se eu descascasse uma pontinha saberia no que dá, se dá num desenho, se dá numa parte lixada, vou descascá-lo e deixar na sua cor original, não fiz isso antes porque nem pensei que pudesse ter uma cor original. As coisas nos são dadas como se sempre existissem, calham e encalham em nossas vidas de maneira que sempre estiveram ali, daquela exata maneira, lembro, minha mãe dizia às visitas, não tínhamos crescido, não, que era impressão, que as pessoas ficavam um tempinho sem nos ver e já tinham essa impressão, crescíamos, ela achava isso uma bobagem, eu sabia porque quando ela achava bobagem nas coisas ria sem querer rir, o som era sempre o mesmo e durava exatos quatro segundos. Sei que não posso sair dessa posição só para dar uma descascadinha na quina porque vão achar, estou delirando, preciso ir ao hospital, ao hospital não quero ir, não, quero tomar um banho e acabar aquele trabalho, preciso entregar amanhã, vou ficar aqui quietinha e fazer tudo o que me mandarem fazer, assim poupo o tempo para você nascer.
§3. A parte na quina, se complementada com a mesma ausência do outro lado, forma uma mariposa, o trabalho de amanhã é uma vinheta a partir do formato da mariposa, descobri diversos formatos e tamanhos, escolhi um, por uma coincidência feliz, parece com o que esse pretende, caso tenha a outra metade. O suor cai sobre os meus olhos, e agora não consigo mais evitar, constitui fossa, embaça o que não quero ver, não quero ver você nascer, e ajuda a focar no que o defeito da quina do armário revela, revela o que é ameno da cor e o que falta da forma, meu deus, como queria levantar e descascar o outro lado, vou passar verniz por cima da ausência, assim dura mais do que o tempo permitiria durar, vou comprar verniz e pincel amanhã, hoje não dá mais tempo, veja só a hora e você não nasce, a hora que você nascer vai ser a hora de dizer sem ser entendido por alucinação, a hora de doer sem precisar ir ao médico e a hora de viver sem ter que assinar mais nenhum papel, nem participar de nenhuma entrevista mais, a hora de você nascer é a hora de você partir e eu seguir, você não estará mais dentro do meu corpo.
§4. Contração é pontada aguda no medo, arrebatamento dado com pá na nuca desnuda, já ferida, a carne que recente aparece, não tem tempo de preparar-se para a próxima pancada, que vem certeira, não falha, a gente aprende a respeitar o que é certo da mesma maneira que aprende a respirar, não há escolha, não há crise, há o sopro, o trago, o alívio, não se percebe alívio, o alívio que é alívio por si mesmo. Com o tempo, a contração é festejada, acho que o delírio encarrega-se de trazer conforto, senti como se tivesse me desfeito das vísceras, como se as tivesse entregue, como que numa oferenda, e posso confessar que a sensação não foi das piores, sem vísceras não resistiria para ver você partir e não precisaria decidir de que maneira explicaria isso a mim mesma todas as manhãs ou todas as vezes que tentasse auferir o que seria menos correto, matar o que você pretendia ser, ou matar o que você desejaria ser ou, ainda, matar o que eu poderia lhe ser, aqui o ser subdivide-se em partes que podem ser contadas como as partes do seu corpo, quebrava-se enquanto escorregava entre as paredes do dentro de mim, alojou-se em mim, aceitou-me, escorregou e não alcançou os meus braços, alcançou um fosso que criei com escolhas que gastei instantes para tomar, instantes pequenos, porém maiores do que utilizei para criar a faísca que a natureza precisa para ligar sangue com água, carne com osso.
§5. Dizem que apaguei, enxerguei, enxerguei você, meu amor, saindo da minha vagina, munido de duas asas, asas lindas, manchadas de sangue, mas lindas, aprendi a enxergar além do sangue há muito tempo, e enxerguei você além do sangue, enxerguei os sulcos cravejados de pelos sedosos, os seus olhos pareciam estar em cada cor que distinguia o que você era de tudo, eu conhecia, e você, voou, voou, como que dizendo que tudo bem, tudo bem, tem asas, nasceu com asas, não preciso … lhe ensinar a morrer, pode ver, ver de cima, pode ver o quanto sofro e sente pena de mim, pois mesmo que saiba voar, mesmo que já saiba voar, me culparei por não saber sobreviver sem suas asas, sentirei vontade de lhe cobrir quando eu sentir frio, mesmo que saiba que nasceu coberto de pelos, a natureza teve pena de você, antes mesmo que eu decidisse abandonar-lhe a voar, voar como eu, sem poder contar com ninguém, pois é um sinal de fraqueza, sinal de fraqueza que pode ser facilmente identificado por suas antenas, vão a frente, captando o que não fui capaz de garantir a mim mesma, sinto-me capaz de matar.
§6. Avistei inicialmente foram as antenas, suas asas estavam carinhosamente enroladas, para que não me causassem dor, assim atravessou toda a parede interna do meu corpo, ludibriado de sangue, para a sua passagem, abriu suavemente as quatro camadas coloridas belamente, aprendi a enxergar apesar do sangue, há muito tempo, meu filho, mas não poderei lhe contar isso, não, não serei eu que lhe ensinará a enxergar a partir do sangue, os seus olhos pareciam estar por toda a sua asa (suas asas pareciam cobertas de olhos), seus olhos pareciam olhar-me inteira, utilizando todos os seus sulcos, todas as suas veias, veios, suas extremidades temiam em findar, pareciam…”
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- 24 de abril de 2015