Texto escrito por Guilherme Rodio, professor do curso “Método Stella Adler”, para o Caderno de Registro Macu (Pesquisa), da Teatro Escola Macunaíma.
“Quando me convidaram para escrever um artigo para o Caderno de Registro Macu, relutei muito, pois não me considero um acadêmico nem um professor, mas sim um ator apaixonado pelo aspecto técnico do meu ofício. Não saberia muito bem como começar ou formatar as minhas palavras para estar no mesmo nível dos meus colegas, mas resolvi aceitar o desafio de escrever um registro muito pragmático das minhas experiências.
Em 2014, eu estava trabalhando no teatro já há cinco anos profissionalmente. Tinha tido meu grupo de pesquisa, tinha passado dois anos com o Antunes Filho no CPT e estava trabalhando em projetos com o Grupo XIX de Teatro. Eu sentia que havia tido uma curva de aprendizado teórica interessante, mas me faltavam algumas ferramentas práticas para criar personagens mais realistas, em dramas mais realistas, e que não tinham muito espaço nesses locais de trabalho. Havia é claro o Prêt-à-porter do Antunes Filho, mas que naquele momento estava parado e sem perspectiva de retorno.
Comecei então a procurar cursos fora do Brasil para uma experiência de uns dois meses e acabei selecionando alguns cursos em Los Angeles que me interessavam. Chegando lá, fui procurar a Stella Adler Academy of Acting Hollywood e me identifiquei de imediato com o método, com os professores e com a filosofia de trabalho dela. Ganhei uma bolsa de estudos e acabei ficando um ano estudando lá. O que vou dividir com você leitor, nesse texto, é um pouco do meu aprendizado.
Stella Adler começou muito nova trabalhando no teatro ídiche com seu pai, Jacob Adler, que no começo do século XX em Nova Iorque já tinha grande notoriedade como ator. Na juventude, em companhia de amigos como Lee Strasberg, Harold Clurman e Clifford Odets, teve contato com as primeiras informações sobre o sistema de Stanislávski através de atores do Teatro de Arte de Moscou. Juntos, criaram o Group Theatre e desenvolveram as bases do teatro realista norte americano que culminaria na criação da linguagem cinematográfica de Hollywood. Posteriormente, Stella Adler e Lee Strasberg começaram a divergir sobre as técnicas fundamentais do Sistema. Stella resolveu então viajar a Paris em 1934 para ter aulas com o próprio Stanislávski. Naquela época, Stanislávski, já com 71 anos, havia dispensado as técnicas de Memória Emotiva e usava as Ações Físicas. Voltando aos EUA, Adler apresentou a Lee Strasberg, um dos principais nomes do Actors Studio, a nova abordagem do russo, mas Strasberg a rejeitou, gerando um grande cisma que dura até hoje na metodologia de ensino de atores no país. Stella Adler declarou que Lee Strasberg “entendeu tudo errado” e montou sua própria escola de atuação.
A escola em que estudei é gerida até hoje por professores amigos e herdeiros de Adler, que fazem de tudo para preservar as técnicas desenvolvidas por ela ao longo de sua vida. Lendo livros sobre ela, percebi que havia muita similaridade com Antunes Filho e que poderia haver uma complementaridade entre as filosofias de ambos. O que Adler já no início declara sobre Strasberg é o que eu vivenciei e aprendi nos meus anos de Antunes Filho, e o que divido com você. Não existe método. Os professores são seres em constante movimento e o que era uma verdade de ouro ontem, pode não ser amanhã. O que existe de fato é uma coleção de técnicas compiladas e que se complementam. Algumas são mais eficazes que outras e na realidade o método é pessoal. Cada ator vai entrar em contato com inúmeras dessas técnicas, experimentá-las e decidir de forma fluida o que funciona para si. Durante anos de aprendizagem e trabalho, acredito que um ator desenvolve um método para chamar de seu.
As quatro técnicas centrais para Stella Adler e que se relacionam com Stanislávski são o uso da Análise de Texto, a Imaginação Ativa, a Fragmentação do Texto e as Ações Físicas. Vou tentar, de forma orgânica e fluida, entrar em cada uma delas e dividir o que compreendi do que me foi ensinado. Lembro que essas técnicas estão relacionadas ao realismo e objetivam que o ator VIVA a personagem e não ATUE. Existe uma grande diferença entre estes dois conceitos. Para os americanos de maneira geral, o objetivo maior é SER a personagem e não ser pego atuando. Ser pego atuando é muitas vezes fabricar um sentimento com caras e trejeitos que eu não estou de fato sentindo, e isso, para uma audiência qualificada, é claramente perceptível. Outro ponto preliminar importante é que todo esse trabalho aqui proposto é anterior à palavra. Stella defendia que as palavras que saem da boca de uma personagem são como as cerejas de um bolo. Há muito trabalho prévio a ser feito para mergulhar na personagem, e fazer como muitos atores, que correm para decorar o texto em primeiro lugar, é um erro crasso.
A Análise de Texto é um trabalho fundamental, segundo Stella, para contextualizarmos a pesquisa que nos alimentará para as etapas seguintes. Para ela, só é possível que eu interprete uma personagem em uma obra de forma plenamente orgânica se eu dominar o máximo que posso o contexto dela e da obra com riqueza de detalhes. Por exemplo, em Tio Vânia, de Anton Tchékhov, se eu vou trabalhar com Ástrov, devo entender que estou em uma propriedade rural no interior da Rússia na segunda metade do século XIX. Como era o sistema político? Estamos antes da Revolução Russa. Essas fazendas estavam apinhadas de servos em péssimas condições de trabalho e moradia. As epidemias se grassavam, e Ástrov tinha muito trabalho. Ele é um médico viajante em um país frio, sofrendo com as condições da estrada e com o tempo. A peça nos diz que ele passa na fazenda de Sônia e Vânia uma vez a cada tantos meses. Todo o tempo ele está em fazendas como essa. Em algumas é melhor tratado, em outras pior. Qual a situação econômica no interior da Rússia nessa época? A colheita é boa? Existem dívidas bancárias? Os bancos executavam essas dívidas? O que acontece? Aconteceu o mesmo com uma família vizinha, e eles perderam tudo? A vida em Moscou é diferente? É um sonho ir para longe desse lugar? Tudo isso me ajuda a me transportar para uma época e lugar específicos e me conectar com a realidade daquelas pessoas em temas como política, economia, arte, religião, costumes etc.
A Análise de Texto também me ajuda a entender o tema da obra. Sobre o que estamos falando aqui? Quando lemos o roteiro da série britânica Downton Abbey, por exemplo, sabemos que estamos lidando com mudanças. Todas as personagens revolvem ao redor deste tema, sejam servos ou senhores, todas têm uma posição sobre o que é melhor: nos aferrarmos às nossas tradições para não perdermos nossa identidade e segurança ou abraçarmos a modernidade e nos arriscarmos a ganhar com um futuro promissor? Resisto ou aceito? Este paradigma é o motor dramático dessa obra, o tema dela.
Passemos então à Imaginação Ativa. Ela é a capacidade de nos convencermos das realidades da obra que estamos trabalhando de forma criativa. Após nos debruçarmos sobre o texto de todas as formas que pudermos, pesquisarmos no Google, lermos obras do período, procurarmos músicas, arte, enfim, aprendermos o máximo que pudermos, partimos para o trabalho mais pessoal. Ele se divide entre criação do passado da personagem e criação do lugar de cena. O passado da personagem é uma forma de incorporar baseada na criação de imagens que nos movam a ter sentimentos reais. Por exemplo, em Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, temos alguns elementos que nos contam do passado de Blanche, mas muitas outras lacunas podem ser preenchidas para nos trazer maior presença nesse papel. Blanche cresceu com dinheiro? A família foi perdendo aos poucos? Ela foi abusada sexualmente? Quantas vezes? Por quem? Era um amigo da família? Um credor da fazenda? Os pais estavam dispostos a tudo para preservar a tradição da família?
Conforme eu crio essas situações e essa gênese, eu vou entendendo melhor a personagem e vou à busca de duas coisas principais: detalhes (porque a arte é feita deles) e imagens que me movam profundamente. Por exemplo, se Blanche foi abusada, e eu como atriz crio de forma específica esse abusador, essa imagem irá me mover profundamente quando eu fizer a cena com Stanley. Era um amigo dos pais? Era velho? Tinha uma barriga enorme? Passou a mão em minhas coxas? Suas unhas estavam sujas? Quanto mais detalhes eu dou, mais essa imagem fica real. Nesse ponto reside a diferença principal entre Stella Adler e Lee Strasberg. Para Strasberg, nós podemos nos apoiar nas nossas próprias memórias e substituir um fato fictício por outro análogo que tenha acontecido conosco. Adler não acreditava nisso. Ela dava um exemplo muito claro: se eu sou um ator que vai interpretar Carlos Magno em uma cena em que ele descobre a morte do filho de oito anos, não posso usar minhas próprias memórias de perda, pois elas não serão específicas o suficiente. Um homem de 36 anos que perde um filho de oito anos em 2018 é totalmente diferente de um rei da Idade Média que perde um filho de oito anos. Naquela época era raro um filho atingir a vida adulta. As guerras, doenças e acidentes matavam muitas crianças, e os pais já estavam acostumados com isso. A reação é totalmente diferente. Fora o fato de que Carlos Magno não poderia ser visto de maneira vulnerável por sua corte, pois isso enfraqueceria o reino todo. A ideia do realismo é ser o mais fiel possível ao contexto histórico da obra.
A segunda ferramenta usada pela Imaginação é a criação do lugar de cena. Todas as cenas em que atuo, segundo Adler, devem ser criadas de antemão pelo ator, em seu trabalho em casa. Muitas vezes a peça dá alguns detalhes do lugar, mas novamente há muitas lacunas a serem preenchidas pelo ator. Exemplo: a cena se passa na sala de estar da casa de Sórin em A Gaivota, de Anton Tchékhov. A peça já nos dá muitos elementos visuais de como é essa sala, mas como eu posso personalizar essa imagem? Tornála minha? Viver com desenvoltura nessa sala, com organicidade, viver de fato e não atuar? Se eu sou Trépliov, eu vivo nessa casa desde a infância com meu tio enquanto minha mãe trabalha. Conheço os móveis todos. O rasgo no sofá que está escondido pela almofada vermelha, a perna da mesinha do samovar que está bamba desde o verão passado, e ninguém ainda arrumou. A vista do lago pela janela. Como é essa vista no verão? Na primavera? No inverno? O lago é profundo? Já nadei nele? E quando a filhinha de um mujique se afogou, e eu acompanhei o resgate do seu corpinho pelos homens? Tudo isso me faz estar em casa nessa sala, vivendo com plenitude. Esse trabalho o ator deve fazer em casa, buscando os detalhes que mais o alimentarão principalmente nas cenas mais difíceis da peça. Posteriormente, conforme o cenário físico entra, ele mesmo irá fazer as adaptações necessárias.
Chegamos à terceira técnica importante para Stella Adler, a Fragmentação do Texto. Após estarmos bastante embasados nos contextos maiores e menores propostos pelas técnicas anteriores, passamos para o texto propriamente dito. O trabalho consiste em dividir esse texto em atos, cenas, viradas de cena, parágrafos e linhas, de forma a fragmentar o texto e buscar o entendimento de cada unidade desse texto, entender os objetivos das personagens. Por exemplo: O que é o segundo ato? Essa cena é a cena da despedida das personagens? Elas esperam voltar a ver-se? Quando ela vai embora o mundo dele acaba? O que ele quer? O que ela quer? O que está sendo dito neste parágrafo? Ele está discorrendo sobre a vida das bactérias anaeróbicas, mas na verdade quer dizer que não aguentará viver sem ela? Esse é o subtexto?
E então a Fragmentação do Texto nos leva direto às Ações Físicas:
E nessa frase especificamente? O que ele está FAZENDO? Está ameaçando-a? Julgando-a? Buscando conectar-se?
Eu já tinha ouvido falar de Ações Físicas de forma teórica, mas nunca tinha aprendido na prática como funcionava. A princípio o funcionamento é simples, mas esconde algumas dificuldades. A cada unidade de texto, buscamos entender o que a personagem está fazendo, em um processo de ação e reação. Lembrando que fazer é muito diferente de sentir. SENTIMENTO é resultado, nunca ferramenta, conforme Adler nos apresenta. Eu não estou triste ou angustiado nessa fala. Eu estou fazendo algo. Fazer é controlável pelo ator e gera um sentimento como resultado. Eu estou ameaçando-a na frase. Quando quero ameaçar alguém, como meu corpo se comporta, o que ele faz? Faz uma Ação Física de ameaça! Cerra os punhos, bate na mesa etc. A grande questão é acertar uma ação condizente e que expresse a natureza mais profunda da cena. No processo de busca, temos que ir sempre atrás das camadas mais profundas, não das primeiras que nos veem a mente.
Esses quatro pilares técnicos do método Adler são acompanhados por muitas outras técnicas, e cada um deles tem pedagogicamente uma série de exercícios para desenvolvimento e aprofundamento. Stella Adler defendeu que todo ator deveria se dedicar a ampliar seu repertório durante a vida de forma incessante, para que pudesse agregar o máximo de qualidade e profundidade ao seu trabalho usando a técnica. Ela dizia duas coisas importantes para seus atores: a primeira é que nós vivemos em um contexto do dia a dia que ela chamava de “pedestre”. Ele se relaciona ao naturalismo rasteiro que vemos aos montes, por exemplo, nas novelas de televisão, e é dever do ator trabalhar para elevar a obra à sua universalidade, ao nível ao qual o autor a pensou. Para tanto, o ator deve se dedicar a um entendimento profundo da obra e da personagem e com muito respeito fazer jus àquela vida imaginada, que pode muito bem ter a plena força da realidade e tocar os sentimentos do público.
A segunda coisa é que o talento do ator reside em suas escolhas. Em todo esse processo que descrevi, o ator terá que escolher caminhos a partir de seu repertório e sensibilidade, portanto, se o ator trabalhar esse repertório e essa sensibilidade, poderá fazer escolhas mais maduras que elevarão o nível de seu trabalho e da obra como todo.
Agradeço a oportunidade de poder dividir este conteúdo. Espero ter podido em poucas palavras trazer um panorama do trabalho de Stella Adler para você leitor. Se quiser buscar mais informações ou tiver dúvidas, me procure no Facebook.”
Para saber mais sobre o programa do curso e realizar sua inscrição, clique aqui.
Método Stella Adler
20 de janeiro a 5 de fevereiro de 2020
segundas e quartas, das 19h às 23h
b_arco
Rua Dr Virgilio de Carvalho Pinto, 426 – Pinheiros, São Paulo
Próximo da estação Fradique Coutinho do Metrô
Estacionamento ao lado